Pode parecer que não, mas a história contada no filme "Vingadores: Guerra Infinita" (2018) permite reflexões sobre o Direito brasileiro! Tratemos um pouquinho de questões sucessórias, previdenciárias, tributárias e de direito de família que, de forma inusitada, surgem ao imaginarmos as consequências do que nos foi mostrado no filme.
(O presente texto conterá spoilers de Vingadores 3: Guerra Infinita e poderá conter spoilers de outros filmes do universo cinematográfico Marvel).
Thanos conseguiu superar todos os Vingadores, coletar as jóias do infinito e, utilizando a manopla do infinito especialmente forjada para suportar o poder de tais objetos, conseguiu atingir o seu funesto objetivo — ainda que com uma motivação supostamente nobre — de dizimar metade da população de todo o universo por meio de um gesto simples que já se tornou um ícone na cultura pop mundial: um estalar de dedos.
Esse é o ápice do terceiro filme dos Vingadores, de subtítulo "Guerra Infinita", baseado na saga "Desafio Infinito" dos quadrinhos da Marvel. Todos sabemos o resultado: a metade dos seres dizimados nessa grande loteria cósmica simplesmente foi esfarelando. Os efeitos em cascata nefastos de tal situação se ele tivesse ocorrido no mundo real já foram analisados em textos de outros blogs e mídias (como se vê no blog ei nerd! e no podcast nerdcast - e propostas muito melhores para atingir o mesmo objetivo podem ser vistos nesse vídeo do Nerdologia). Hoje, interessa-nos refletir sobre os efeitos jurídicos desse acontecimento se ele fosse real.
O estalo ocorreu no fictício país de Wakanda, na África, mas seus efeitos, como já dissemos, foram para todo o universo. Podemos então assumir que cerca de metade dos brasileiros também desapareceriam no mesmo momento — o que é obviamente um chute, pois o fim de metade do universo poderia ter poupado todos os brasileiros, não sendo possível afirmar que as mortes seriam igualitárias por localização geográfica... mas, para nossa reflexão, consideremos que ela se deu de forma constante para todos os recortes geográficos, de idade, profissão etc.
Inicialmente, alguns fatos que podem ser pressupostos pelo que vimos no filme. Primeiro: o fenômeno do desaparecimento não ocorreu imediatamente para todos. Houve um delay, mas podemos também pressupor que várias pessoas desintegraram-se ao mesmo tempo. Segundo: algumas das desintegrações tiveram testemunhas ou foram gravadas por câmeras de vídeo (como celulares ou câmeras de segurança), enquanto outras não. Terceiro: a população em geral não sabia o que estava ocorrendo e a notícia de que um Titã alienígena havia aniquilado metade dos seres do universo levou um tempo até se disseminar oficialmente; contudo, em poucas horas, seria um fato amplamente conhecido mundialmente — para ficarmos no âmbito terráqueo.
Vejamos tudo isso sob uma óptica jurídica... o nascimento e a morte são fatos naturais que geram efeitos jurídicos. Do ponto de vista jurídico, um ser humano atua por possuir o que a legislação denomina de "personalidade civil" que, no caso brasileiro, inicia-se com o nascimento com vida (artigo 2º do Código Civil) e termina com a morte (artigo 6º do mesmo Código). Ao possuir personalidade jurídica, a pessoa pode ser titular de direitos e de obrigações (e isso faz parte de nossa vida a cada momento, permitindo que sejamos matriculados na escola, que tenhamos um emprego, que compremos ou vendamos algo etc.).
Do ponto de vista dos que não foram atingidos — e sem que entremos no que ocorreu depois, em Vingadores: Ultimato — não haveria dúvida que as pessoas desintegradas pelo estalo de Thanos morreram. Isso traria numerosas consequências jurídicas e bastante confusão, até mesmo pelo inimaginável número de atingidos: só no Brasil, cerca de 104 milhões de almas na data do acontecimento no ano de 2018, metade da população nacional segundo o IBGE. Principalmente, com a morte abre-se a chamada "sucessão", que nada mais é que a transferência do patrimônio do falecido aos "sucessores", ou seja, a questão da herança. O problema é que não haveria corpos que permitissem o atestado de óbito por médicos, não haveriam enterros ou cremações documentados... e tudo no Direito é constituído por uma linguagem própria, que transforma os fatos do mundo real em fatos jurídicos.
Este texto limita-se à análise das mortes entre a população em geral. Futuramente falaremos dos efeitos do ocorrido em relação às autoridades constituídas (é! Também morreriam parlamentares, presidentes, ministros do Supremo...), em que adentraremos em temas de Direito Constitucional. No que nos interessa aqui, o chamado "assento de óbito" compete, no Brasil, aos cartórios de Registros Civis das Pessoas Naturais, nos termos do artigo 29, inciso III, da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973).
Sem cadáver para exame, como seriam assentados os milhões de óbitos? É bem capaz que houvesse a aprovação de uma lei específica autorizando o registro de forma simplificada diante da tragédia (lei essa aprovada por um Congresso Nacional desfigurado pela mesma tragédia). Porém, se não existisse tal regra específica, nosso direito civil possui uma previsão que poderia ser utilizada em tal situação: a figura da morte presumida.
Pois é... o mundo jurídico cria sua própria realidade ficcional. A morte pode ser decretada juridicamente ainda que não se saiba se ela realmente ocorreu no mundo real. Ela aparece no caso brasileiro sob a figura da morte presumida do ausente e da morte presumida sem decretação de ausência. É o que preveem os artigos 6º e 7º do Código Civil:
A utilização da figura do ausente até poderia ser imaginada para os casos dos desintegrados que não tivessem testemunho ou gravação. O mais provável é que fosse aplicada a previsão do artigo 7º do Código Civil, que trata da morte presumida sem decretação de ausência, por aplicação do que prevê o inciso I (morte extremamente provável) observado o Parágrafo Único (após esgotadas buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento — essa última parte seria fácil!). Note-se que não seria a morte provável de quem estava em perigo de vida... mas aqui se aplicaria a analogia, a aplicação da lei a casos semelhantes, como autoriza o artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei n. 4.657/1942).
Isso se daria até mesmo pela previsão do artigo 88 da já mencionada Lei de Registros Públicos, que possui uma previsão mais ampla de justificação judicial para assento de óbito no caso de pessoas desaparecidas em qualquer catástrofe, quando estiver provada a sua presença no local (no caso, o Universo do qual fazemos parte) e não for possível encontrar-se o cadáver para exame (na hipótese, ele teria virado poeira).
Reprodução
O que decorreria de tal decretação de óbito presumido? Os mesmos efeitos jurídicos da morte provada tim-tim por tim-tim: do ponto de vista civil, seria aberta a sucessão, ou seja, o procedimento de transferência do patrimônio para os herdeiros, viúvos-meeiros ou legatários (os que possuem previsão de recebimento de herança em testamentos). Seria dissolvido o casamento no mais perfeito cumprimento da famosa frase "até que a morte os separe" como o prevê o inciso I do artigo 1.571 do Código Civil, aplicando-se o mesmo à união estável (artigo 7º da Lei n. 9.278/1996). O cônjuge ou companheiro sobrevivente seria considerado viúvo, recebendo sua parte dos bens e podendo novamente casar.
No âmbito civil haveria uma intensa guerra judicial acerca do dever de cumprimento dos contratos de seguro de vida: as seguradoras buscariam eximir-se do dever de pagamento alegando a aplicação por analogia das cláusulas referentes a desastres (cremos que nenhum desses contratos preveria ataques genocidas intergalácticos... se bem que após a batalha de Nova Iorque do primeiro filme dos Vingadores isso poderia ter se tornado comum) ou a resolução do contrato por onerosidade excessiva (artigo 478 e seguintes do Código Civil), se bem que no caso de seguros eventualmente contratados por super-heróis em território brasileiro seria interessante ver a interpretação que seria dada à parte final do artigo 799 do mesmo Código (Art. 799. O segurador não pode eximir-se ao pagamento do seguro, ainda que da apólice conste a restrição, se a morte ou a incapacidade do segurado provier da utilização de meio de transporte mais arriscado, da prestação de serviço militar, da prática de esporte, ou de atos de humanidade em auxílio de outrem).
Inexistindo testemunha ou gravação comprovando a ordem do desaparecimento, seria caso de aplicação do artigo 8º do Código Civil que prevê a regra da comoriência: seriam as pessoas consideradas mortas no mesmo momento, o que é muito relevante no caso de decisão sobre a sucessão de bens em que houve o desaparecimento de parentes que se sucediam. Essa situação pode modificar o desenho de divisão de bens para os que sobreviverem, conforme o momento da morte de um herdeiro seja considerada anterior, simultânea ou posterior ao de seu pai, por exemplo.
Há mais, ainda! Após o reconhecimento do falecimento, haveria a concessão da pensão por morte (artigo 74 da Lei 8.213/1991), momento em que adentramos no Direito Previdenciário. Nem mesmo de impostos se livrariam os que ficaram: sobre a transferência de bens do desintegrado por Thanos incidiria o Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doações — ITCMD. Acerca do referido imposto no caso de morte presumida, já se manifestou favoravelmente o Supremo Tribunal Federal (e o tema é pacífico, como se vê de sua Súmula n. 331). Isso não deveria causar espanto, afinal, como já afirmara Benjamin Franklin:
Até lá!
Inicialmente, alguns fatos que podem ser pressupostos pelo que vimos no filme. Primeiro: o fenômeno do desaparecimento não ocorreu imediatamente para todos. Houve um delay, mas podemos também pressupor que várias pessoas desintegraram-se ao mesmo tempo. Segundo: algumas das desintegrações tiveram testemunhas ou foram gravadas por câmeras de vídeo (como celulares ou câmeras de segurança), enquanto outras não. Terceiro: a população em geral não sabia o que estava ocorrendo e a notícia de que um Titã alienígena havia aniquilado metade dos seres do universo levou um tempo até se disseminar oficialmente; contudo, em poucas horas, seria um fato amplamente conhecido mundialmente — para ficarmos no âmbito terráqueo.
Vejamos tudo isso sob uma óptica jurídica... o nascimento e a morte são fatos naturais que geram efeitos jurídicos. Do ponto de vista jurídico, um ser humano atua por possuir o que a legislação denomina de "personalidade civil" que, no caso brasileiro, inicia-se com o nascimento com vida (artigo 2º do Código Civil) e termina com a morte (artigo 6º do mesmo Código). Ao possuir personalidade jurídica, a pessoa pode ser titular de direitos e de obrigações (e isso faz parte de nossa vida a cada momento, permitindo que sejamos matriculados na escola, que tenhamos um emprego, que compremos ou vendamos algo etc.).
Do ponto de vista dos que não foram atingidos — e sem que entremos no que ocorreu depois, em Vingadores: Ultimato — não haveria dúvida que as pessoas desintegradas pelo estalo de Thanos morreram. Isso traria numerosas consequências jurídicas e bastante confusão, até mesmo pelo inimaginável número de atingidos: só no Brasil, cerca de 104 milhões de almas na data do acontecimento no ano de 2018, metade da população nacional segundo o IBGE. Principalmente, com a morte abre-se a chamada "sucessão", que nada mais é que a transferência do patrimônio do falecido aos "sucessores", ou seja, a questão da herança. O problema é que não haveria corpos que permitissem o atestado de óbito por médicos, não haveriam enterros ou cremações documentados... e tudo no Direito é constituído por uma linguagem própria, que transforma os fatos do mundo real em fatos jurídicos.
Este texto limita-se à análise das mortes entre a população em geral. Futuramente falaremos dos efeitos do ocorrido em relação às autoridades constituídas (é! Também morreriam parlamentares, presidentes, ministros do Supremo...), em que adentraremos em temas de Direito Constitucional. No que nos interessa aqui, o chamado "assento de óbito" compete, no Brasil, aos cartórios de Registros Civis das Pessoas Naturais, nos termos do artigo 29, inciso III, da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973).
Sem cadáver para exame, como seriam assentados os milhões de óbitos? É bem capaz que houvesse a aprovação de uma lei específica autorizando o registro de forma simplificada diante da tragédia (lei essa aprovada por um Congresso Nacional desfigurado pela mesma tragédia). Porém, se não existisse tal regra específica, nosso direito civil possui uma previsão que poderia ser utilizada em tal situação: a figura da morte presumida.
Pois é... o mundo jurídico cria sua própria realidade ficcional. A morte pode ser decretada juridicamente ainda que não se saiba se ela realmente ocorreu no mundo real. Ela aparece no caso brasileiro sob a figura da morte presumida do ausente e da morte presumida sem decretação de ausência. É o que preveem os artigos 6º e 7º do Código Civil:
Art. 6o A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva.
O ausente é a pessoa que desapareceu sem que dela se tenha notícia. O Código Civil prevê que, em tal situação, se não houver pessoa autorizada a gerir seu patrimônio (um procurador ou representante), haverá a declaração de ausência pelo juiz, com a nomeação de um curador para os bens (artigo 22). No prazo de 3 anos (se havia procurador ou representante) ou 1 ano (se nomeado curador), os interessados podem requerer judicialmente a decretação da ausência e a abertura da chamada "sucessão provisória" (artigo 26 do Código Civil) que poderá ser convertida em definitiva após 10 anos da data em que não couber mais recursos da decisão anterior (ou seja, do trânsito em julgado da decisão que decretou a sucessão provisória, na forma do artigo 37 do mesmo Código).Art. 7o Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência:
A utilização da figura do ausente até poderia ser imaginada para os casos dos desintegrados que não tivessem testemunho ou gravação. O mais provável é que fosse aplicada a previsão do artigo 7º do Código Civil, que trata da morte presumida sem decretação de ausência, por aplicação do que prevê o inciso I (morte extremamente provável) observado o Parágrafo Único (após esgotadas buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento — essa última parte seria fácil!). Note-se que não seria a morte provável de quem estava em perigo de vida... mas aqui se aplicaria a analogia, a aplicação da lei a casos semelhantes, como autoriza o artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei n. 4.657/1942).
Isso se daria até mesmo pela previsão do artigo 88 da já mencionada Lei de Registros Públicos, que possui uma previsão mais ampla de justificação judicial para assento de óbito no caso de pessoas desaparecidas em qualquer catástrofe, quando estiver provada a sua presença no local (no caso, o Universo do qual fazemos parte) e não for possível encontrar-se o cadáver para exame (na hipótese, ele teria virado poeira).
Reprodução
O que decorreria de tal decretação de óbito presumido? Os mesmos efeitos jurídicos da morte provada tim-tim por tim-tim: do ponto de vista civil, seria aberta a sucessão, ou seja, o procedimento de transferência do patrimônio para os herdeiros, viúvos-meeiros ou legatários (os que possuem previsão de recebimento de herança em testamentos). Seria dissolvido o casamento no mais perfeito cumprimento da famosa frase "até que a morte os separe" como o prevê o inciso I do artigo 1.571 do Código Civil, aplicando-se o mesmo à união estável (artigo 7º da Lei n. 9.278/1996). O cônjuge ou companheiro sobrevivente seria considerado viúvo, recebendo sua parte dos bens e podendo novamente casar.
No âmbito civil haveria uma intensa guerra judicial acerca do dever de cumprimento dos contratos de seguro de vida: as seguradoras buscariam eximir-se do dever de pagamento alegando a aplicação por analogia das cláusulas referentes a desastres (cremos que nenhum desses contratos preveria ataques genocidas intergalácticos... se bem que após a batalha de Nova Iorque do primeiro filme dos Vingadores isso poderia ter se tornado comum) ou a resolução do contrato por onerosidade excessiva (artigo 478 e seguintes do Código Civil), se bem que no caso de seguros eventualmente contratados por super-heróis em território brasileiro seria interessante ver a interpretação que seria dada à parte final do artigo 799 do mesmo Código (Art. 799. O segurador não pode eximir-se ao pagamento do seguro, ainda que da apólice conste a restrição, se a morte ou a incapacidade do segurado provier da utilização de meio de transporte mais arriscado, da prestação de serviço militar, da prática de esporte, ou de atos de humanidade em auxílio de outrem).
Inexistindo testemunha ou gravação comprovando a ordem do desaparecimento, seria caso de aplicação do artigo 8º do Código Civil que prevê a regra da comoriência: seriam as pessoas consideradas mortas no mesmo momento, o que é muito relevante no caso de decisão sobre a sucessão de bens em que houve o desaparecimento de parentes que se sucediam. Essa situação pode modificar o desenho de divisão de bens para os que sobreviverem, conforme o momento da morte de um herdeiro seja considerada anterior, simultânea ou posterior ao de seu pai, por exemplo.
Há mais, ainda! Após o reconhecimento do falecimento, haveria a concessão da pensão por morte (artigo 74 da Lei 8.213/1991), momento em que adentramos no Direito Previdenciário. Nem mesmo de impostos se livrariam os que ficaram: sobre a transferência de bens do desintegrado por Thanos incidiria o Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doações — ITCMD. Acerca do referido imposto no caso de morte presumida, já se manifestou favoravelmente o Supremo Tribunal Federal (e o tema é pacífico, como se vê de sua Súmula n. 331). Isso não deveria causar espanto, afinal, como já afirmara Benjamin Franklin:
Neste mundo, só há duas coisas infalíveis: os impostos e a morte.A questão é que a coisa não parou em Vingadores: Guerra Infinita. Em 2019 tivemos Vingadores: Ultimato e aí... bem, isso é assunto para outro dia!
Até lá!
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