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Direito, Matrix e a Linguagem

Há vinte anos estreava Matrix (1999), um filme revolucionário em diversos aspectos e que marcou a virada do século criando tendências que até hoje se fazem sentir no cinema e na cultura pop. Juntamente com suas menos festejadas continuações (Matrix Reloaded e Matrix Revolutions, de 2003), trouxeram uma renovação na ficção científica com uma rica discussão filosófica que já foi bastante debatida em diversas mídias (a respeito, veja-se por exemplo a playlist do canal Elegante no YouTube).

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No presente texto queremos repensar alguns dos elementos de seu roteiro sob as lentes da filosofia do Direito, o que pode parecer inusitado mas se coaduna com o potencial de releituras da história, repleta de camadas e baseada em discussões essenciais da Filosofia e das religiões.

Haverá, obviamente, spoilers de toda a trilogia e de materiais do universo compartilhado, em especial do primeiro filme. Fica o aviso.

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Matrix conta a estória de Thomas Anderson (Keanu Reeves), conhecido como Neo em sua atuação noturna como hacker. Como todos sabemos, guiado por Morpheus (Laurence Fishburne) e por Trinity (Carrie-Anne Moss) ele acaba descobrindo que o que todos conhecemos por "realidade" nada mais é que uma complexa simulação computadorizada que mantém a humanidade em constante hibernação para produção de bioenergia que serve de fonte de energia para robôs que em determinado momento da história da Terra chegaram a um alto nível de inteligência artificial e venceram uma guerra contra nós - note-se que não causada por eles, como se vê em detalhes nos curtas da coletânea Animatrix (2003). Neo vivencia a clássica jornada do herói, em que se descobre como o "escolhido" que guiaria a humanidade para a vitória final contra as máquinas, tema que foi desconstruído e complexificado nos filmes seguintes, cujo aprofundamento não vem ao caso agora.

As questões filosóficas e religiosas levantadas pelos filmes não são poucas: desde a repaginação do mito da Caverna de Platão ou do gênio maligno de Descartes às discussões sobre o papel do messias cristão ou da ilusão do mundo das sensações (maya) budista, os exemplos poderiam ser descortinados em sucessivas camadas.

O aspecto que mais nos interessa, contudo, é que o mundo "real", aquele em que vivia Neo (a Terra no ano de 1999) nada mais era do que meros impulsos elétricos criando ilusões na mente de pessoas dormentes numa grande rede digital compartilhada: em suma, o mundo como o conhecemos não passava de uma linguagem computadorizada, códigos de programação, bits. Eis a matrix.

E se disséssemos que o Direito se assemelha muito, alegoricamente falando, à matrix? Vamos explicar esse ponto de vista.

Já há muitas décadas os jusfilósofos têm apontado a existência de uma dimensão claramente linguística do Direito (para alguns, a sua própria essência seria linguística). Tal dimensão é perceptível pelo fato de que as normas jurídicas são veiculadas por meio de textos (como os textos de uma lei ou de uma sentença) e mesmo o mais simples dos contratos (como a compra de um sabonete no mercadinho da esquina) não deixa de ser revestido pelo invólucro textual (verbal, nesse caso). Essa é uma forma de aproximação bastante difundida na chamada Teoria Analítica do Direito, que bebe das fontes da Filosofia Analítica, que tem as questões atinentes à linguagem como principal preocupação.

Tem-se, então, uma linguagem que tenta mudar o mundo real, dizendo como ele deve ser. Prescrevendo condutas humanas para que elas sejam de determinada forma, e não como são. Temos, então, um mundo real (chamado de "mundo do ser") do qual trata a linguagem do Direito (o mundo do "dever ser"). Quando uma lei proíbe e pune o homicídio, determina como o mundo deve ser, não como será, nem tenta descrever o mundo como ele é (a distinção entre ser e dever ser vem desde David Hume). Pode ser que a conduta proibida continue ocorrendo. Pode ser que a pena prevista para quem a cometa não seja aplicada. Isso não interfere em como as coisas deveriam ser, segundo as prescrições jurídicas.

Podemos afirmar, então, que temos o mundo real e sobre ele, os códigos binários do Direito (o lícito e o ilícito, por exemplo), como uma camada linguística que traz ressignificações aos acontecimentos materiais. Transformam-nos em outra coisa. Podemos dizer, também, que tal camada linguístico-jurídica programa como deve o ser humano enxergar, com as lentes jurídicas, determinados acontecimentos, e também como devem as pessoas agir.

No mundo real, um ser humano mata outro. Sob as lentes dessa programação jurídica, podemos reler tal fato de forma a enxergar o chamado "homicídio", um crime sujeito a pena base de reclusão de 6 a 20 anos. Mas tal fato pode também ser lido, a depender das circunstâncias, como o exercício de um direito de autodefesa ("legítima defesa"). Se houvesse autorização legal , poder-se-ia tratar de um dever médico contratual de realizar a eutanásia. Fosse isso permitido por dado ordenamento jurídico, poder-se-ia tratar do cumprimento do dever profissional de executar a pena de morte.

O mesmo fato social, material. Diferentes leituras sob as camadas dos "códigos" do Direito.

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Usando a história de Matrix como uma alegoria, a programação do sistema funciona como as normas jurídicas, prescrevendo como os seres humanos devem agir, os limites de sua ação (nesse caso, inclusive, como leis da física). Os seres humanos despertos que se conectam ao sistema para lutar contra ele podem ser vistos, em certa perspectiva, como núcleos revolucionários (ou golpistas, a depender da óptica), que querem acabar com o sistema, despertando a sociedade para um mundo melhor (o real) - Cypher discordaria dessa afirmação de forma veemente! Perante o status quo eles seriam não mais que criminosos, por agirem fora da programação estabelecida, ou seja, ilicitamente. O sistema agiria, portanto, para impedi-los por meio da atuação de autoridades revestidas de competência jurídica para a investigação e aplicação de sanções - os agentes.

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Muitas outras camadas de leitura são ainda possíveis (e poderemos falar delas no futuro). Observando a equipe da Nabucodonosor inserida na Matrix como uma metáfora de pessoas agindo fora da programação do sistema, como quem comete crimes, até mesmo como hackers - e essa era a forma como eles eram considerados dentro do noticiário do mundo simulado na história do filme - pode-se imaginar que o próprio sistema por meio das autoridades competentes criaria novas regras para evitar o cometimento dos ilícitos, inclusive para facilitar a identificação de crimes. Em nosso mundo, criam -se novas leis tentando criar obstáculos diversos (o surgimento do crime de lavagem de dinheiro, as trocas de informações entre países sobre movimentações financeiras e até a chamada "delação premiada" seriam exemplos). Na Matrix, muda-se a programação de modo a transformar pessoas aleatórias em agentes e criando paredes onde existiam janelas, com direito a um denunciativo bug que conhecemos como déjà vu.

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Os amantes do estudo do Direito podem muitas vezes sentir-se como Neo que, ao despertar da morte no primeiro filme, enxerga a Matrix como ela é, a sua realidade linguística descendo como códigos de programação.  


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