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Democracia, Ditadura e Star Wars

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"A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais." A famosa frase de Winston Churchill recorda-nos que apesar de suas evidentes imperfeições, a democracia é o regime político que melhor parece atender aos anseios típicos das sociedades contemporâneas, exatamente por sua capacidade de resolução institucional dos conflitos típicos da multiplicidade de opiniões que marcam a humanidade.

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Longe de querermos debater toda a complexidade do conceito atual de "democracia" e toda a sua longa história, basta-nos a noção geral que todos conhecemos e que encontramos facilmente na wikipedia: "Democracia é um regime político em que todos os cidadãos elegíveis participam igualmente — diretamente ou através de representantes eleitos — na proposta, no desenvolvimento e na criação de leis, exercendo o poder da governação através do sufrágio universal. Ela abrange as condições sociais, econômicas e culturais que permitem o exercício livre e igual da autodeterminação política." A coisa não é, assim, tão simples, e, para tanto, sugerimos a leitura do ótimo "Poliarquia: Participação e Oposição", de Robert Dahl, em que, para tratar sobre o tema de forma profunda, o autor prefere, inicialmente, abandonar o termo por ele ser intensamente carregado de pré-concepções e paixões que acabam por turvar a análise científica.

Claramente que ao regime democrático se opõe a noção de ditadura, em que o governo é exercido sem a participação popular, com muitos níveis diversos de autoritarismo. Esse é um tema que é debatido pela humanidade de forma criteriosa desde, ao menos, a Grécia antiga e que, obviamente, é retratado de muitas formas pela arte e, consequentemente, pela cultura pop.

Uma das ficções que tem o tema como parte essencial de seu enredo é a saga Star Wars. Na trilogia original (episódios IV, V e VI, lançados entre 1977 a 1983) a trama parte da existência de uma tirania numa galáxia muito, muito distante - o Império Galáctico - contra a qual lutam nobres rebeldes que, ao final, conseguem a tão almejada revolução, derrubando o regime e instaurando a Nova República. Hoje sabemos pela trilogia sequel (episódios VII, VIII e IX, lançados de 2015 a 2019) que a democracia acabou não durando tanto assim, assim como que a maniqueísta luta entre o bem (os rebeldes) e o mal (o Império) não é algo tão simples como pintado nos filmes originais - para tanto, veja-se Rogue One, de 2016, cuja história se passa entre os Episódios III e IV.

O que nos interessa aqui é o enredo da tão criticada trilogia prequel (episódios I, II e III, lançados entre 1999 e 2005). Pessoalmente, gosto bastante desses filmes apesar de seus defeitos. O que importa, contudo, é que essa trilogia aprofunda sob o aspecto político os últimos anos da República Galáctica, que durara mil anos e cuja derrocada é mostrada até o surgimento da ditadura representada pelo Império Galáctico, comandado pelo Imperador Palpatine (Darth Sidious para os íntimos).

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Claro que Star Wars possui muito mais elementos interessantíssimos que aqui deixamos de lado: há, por exemplo, toda a mitologia sobre a qual se ergue o enredo, calcada na milenar luta entre o bem e o mal representada pelas batalhas entre a Ordem Jedi e os Sith, os lados da luz e sombrio do uso da força, respectivamente. A queda da República e o surgimento do Império, sob tal perspectiva, consuma-se com a destruição da Ordem Jedi no Episódio III, cujo título é sugestivo: "A Vingança dos Sith".Não trataremos aqui de todos os aspectos desses filmes, que merecerão análises, sob o viés jurídico, em outras oportunidades: fiquemos, apenas, com a sacada sensacional do roteiro de George Lucas.

A democracia representada pela República Galáctica não foi derrubada ou destruída por um agente externo, uma força invasora ou por um golpe de estado típico. A República foi sendo erodida, pouco a pouco, por dentro: a própria democracia abriu as brechas para que ela fosse destruída

A República Galáctica que nos é apresentada no Episódio I ("A ameaça fantasma") da saga Star Wars, comporta-se como uma federação de planetas, representados no Senado Galáctico localizado na capital, Coruscant, por um senador. Os membros do Senado elegem um Chanceler, que exerce poderes de governo, razão pela qual a organização política assemelha-se ao que conhecemos como parlamentarismo. Há, ainda, outros órgãos estatais, como o Judiciário e a Ordem Jedi.

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No Episódio I vemos como o Senador Palpatine utiliza um bloqueio realizado pela Federação do Comércio ao seu planeta de Naboo como protesto pela taxação de rotas comerciais como alavanca para o voto de desconfiança do então Chanceler Valorum e sua eleição para o cargo. Dez anos depois, no Episódio II ("Ataque dos Clones"), descobrimos que surgiu um movimento separatista de milhares de sistemas planetários comandados pelo Conde Dooku (traduzido para o português brasileiro como "Conde Dookan" pela evidente cacofonia do nome), que acaba levando a um impasse que gera uma guerra civil. Sem que os Jedi pudessem, sozinhos, proteger a República contra o exército de robôs (droides) dos Separatistas, o Senado Galáctico acaba dando poderes emergenciais ao Chanceler Palpatine para fazer frente à calamidade, que determina a utilização de um exército de clones: daí que essa guerra acabou sendo batizada de Guerra Clônica ou Guerra dos Clones.

A Guerra dos Clones dura três anos e foi explorada de forma mais aprofundada em duas séries animadas (Clone Wars), uma da quais terá sua última temporada lançada neste ano de 2020. Nelas se percebe como, pouco a pouco, a atuação dos Jedi como generais na guerra vai minando sua popularidade com a população e corroendo os alicerces da Ordem Jedi, até o ápice que é visto no Episódio III, em que ao descobrirem que o Chanceler Palpatine, com cada vez maior gama de poderes concedidos pelo Senado em face da crise causada pela Guerra, é, na verdade, um membro da Ordem Sith que coordenava ocultamente os dois lados da guerra, a tentativa de prendê-lo e levá-lo a julgamento é acusada como uma tentativa de golpe de Estado, levando à declaração dos Jedi como inimigos da República e a sua caçada pelo próprio exército de clones após a chamada Ordem 66.

Ao final, o Chanceler Palpatine, aclamado como o líder responsável pela grande vitória na sangrenta guerra civil, declara a conversão da República no Primeiro Império Galáctico em discurso no Senado Galáctico, ovacionado pela maior parte dos presentes.

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Ou seja, formalmente, o Império é a própria República Galáctica, modificada por decisões de seus órgãos governamentais dentro dos aparentes limites do que seria permitido pelo ordenamento jurídico ali vigente. Durante dezenove anos essa foi a estrutura de sustentação do Império, que mantinha o Senado como forma de aparentar ares democráticos apesar dos poderes já ilimitados do Imperador. Somente no início do Episódio IV ("Uma nova esperança") é que se noticia a definitiva dissolução do Senado, já não mais necessário após a construção de uma arma de destruição em massa de poder então inédito, que manteria a ordem no Império sob o jugo autoritário já sem disfarces. 

Note-se que o estopim para a escalada autoritária se deu com a concessão de poderes emergenciais ao Chanceler diante dos problemas decorrentes da Guerra que se avizinhava. Existem instrumentos nas constituições que se assemelham a isso, os chamados instrumentos para crises constitucionais, como o estado de sítio e o estado de defesa previstos na Constituição Brasileira de 1988 (artigos 136 a 139). São elas medidas temporárias de restrição a direitos e garantias individuais diante de crises, uma forma de restrição de garantias democráticas para a manutenção de tais garantias.

Na estória contada em Star Wars, os poderes emergenciais temporários tornaram-se permanentes, com a aprovação do próprio órgão democrático por excelência, o Parlamento.

George Lucas já afirmou em entrevistas que sua inspiração para o roteiro dos filmes veio de exemplos históricos diversos: a queda da República poderia ser uma alegoria para a ascensão de Hitler na República de Weimar alemã ou para determinados períodos da Roma antiga. Há quem veja nas críticas políticas do Episódio III uma crítica velada ao governo americano de então, de George W. Bush. Seja como for, calcada de elementos essenciais da cultura humana, a possibilidade de releituras da estória de Star Wars é inesgotável e talvez seja algo sempre atual - para alguns, bastante atual no contexto político mundial de hoje em dia.

Reflexões sobre as formas pelas quais uma democracia pode ser destruída pela instrumentalização de seus próprios órgãos na atualidade é o mote do best seller de Steven Levitsky e de Daniel Ziblatt: "Como as democracias morrem".

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Por tais razões a estória da trilogia prequel é uma interessante reflexão sobre os riscos de que um regime democrático seja instrumentalizado para se tornar, pouco a pouco, um regime autoritário, que sempre se verá como algo bom, como se vê no discurso que o recém autoproclamado Imperador fez ao Senado no Episódio III: o objetivo da transformação da República no primeiro Grande Império Galáctico era o de trazer segurança e paz à Galáxia. Essa crença pode ser sincera (como se vê no diálogo final de Anakin Skywalker e Obi Wan Kenobi no mesmo filme). Por tal razão, ressoa a frase da Senadora Padmé Amidala ao final da sessão do Senado Galáctico em que tudo se consumou: "Então é assim que a liberdade morre: sob um estrondoso aplauso!"

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